ComprasSP Entrevistado - Min. Antonio Anastasia

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Contexto

O Ministro Antonio Anastasia goza de rica trajetória – pluridimensional – no serviço público. Foi Secretário de Estado, Vice-Governador, Governador, Secretário-Executivo ministerial, senador, e, agora, Ministro do Tribunal de Contas da União. E, ao longo desse caminho, a docência sempre lhe fez companhia.

Seu papel, no bojo da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, é de destaque. Foi relator, no Senado Federal – quando do retorno desde a casa revisora, após a votação na Câmara dos Deputados -, do projeto de lei que culminou no novel diploma. Estávamos, à época, em meados do segundo semestre de 2020, em um mundo pandêmico que nos desafiava a impelir avanços à Administração Pública. O então Senador conduziu sua relatoria com agigantado senso técnico, traço que se faz presente em suas atuações.

Em 2022, assumiu o cargo de Ministro na Corte Federal de Contas. E, desde então, vivencia a prática do controle com fulcro no projeto que relatara, e que hoje é uma das maiores disrupções do direito público em passado desde passado recente.

A entrevista é rica per si, e desvela múltiplas camadas. Merecedora, pois, de ser lida e relida. Há distintas matizes, que ensejam reflexão. A relação umbilical entre a Lei nº 14.133/21 e a LINDB, exemplifico, conforme apontado nas linhas abaixo, é profunda e oferece ferramental para uma compreensão superior.

Boa leitura!

Renato Fenili

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Conheça o entrevistado

Ministro Antonio Anastasia

De família de servidores públicos e com ampla experiência na Administração Pública, na qual trabalhou durante toda sua trajetória, o Ministro Antonio Augusto Anastasia é bacharel em Direito e Mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), local onde lecionou durante muitos anos. Foi senador por Minas Gerais (2015/2022) e vice-presidente do Senado Federal (2019/2020), autor e relator de importantes Leis e Emendas Constitucionais. Antes disso, foi governador de Minas Gerais (2010/2014) e vice-governador (2007/2010), além de secretário de Estado de Planejamento e Gestão (2003/2006) e de Defesa Social (2005/2006). No Governo Federal, foi secretário-executivo do Ministério do Trabalho (1995/1999) e do Ministério da Justiça (1999/2001). Atualmente é professor em várias instituições de Ensino Superior.

Entrevista

Entrevistado - Ministro Antonio Anastasia

Depois de termos já, praticamente, um ano da vigência da Nova Lei, eu acredito que nós estamos avançando positivamente em relação à mudança de cultura e até de recepção, digamos assim, da Nova Lei em relação ao marco legal revogado anterior. Por que motivo? Todos percebemos que, tão logo a lei foi sancionada, houve uma grande resistência, na verdade, um grande temor causado pelo desconhecimento do seu conteúdo, das alterações que trazia, e essa resistência acabou levando inclusive à prorrogação, em  alguns meses, da sua plena vigência e da derrogação da Lei nº 8666/93 e das demais normas que foram expressamente revogadas.

Durante esse [de 2024] ano, nota-se que já há uma firme adesão. As pessoas se conformaram, felizmente, e estão estudando, se dedicando e nós estamos avançando. Claro que existem institutos ainda muito novos e que ainda não tiveram uma aplicação muito grande. O próprio “step in”, conforme colocado na pergunta, como também a questão relativa ao diálogo competitivo – não regulamentado: nós estamos ainda aguardando, de fato, que os institutos se complementem. Mas isso é natural, é próprio de uma legislação nova a ser regulamentada, depois a ser implementada dentro de uma cultura que é sempre reacionária às mudanças, o que é típico da administração pública. Então esse período agora, que é o período de transição, já vai ingressando em caminho positivo.

Aqui no TCU, nós estamos com a jurisprudência já iniciando sobre esses assuntos. Vários acórdãos já se manifestaram sobre a Nova Lei, nós estamos de fato já instituindo aqui discussões sobre alguns temas que são polêmicos – e é natural que isso ocorra –, então vejo com muita naturalidade e com muito otimismo esses primeiros meses, já decorrido quase um ano da aplicação da Lei nº 14.133/21. É, portanto, uma visão otimista que trago aqui.

Esta segunda indagação trata do trabalho de acompanhamento que o TCU faz em relação à Lei de Licitações. A criação do índice de maturidade se dá exatamente com o objetivo de não só acompanhar, mas, num segundo momento, estimular, principalmente prefeituras e estados, que façam a sua plena adesão aos novos institutos, que nós possamos perceber que a governança está sendo aplicada na sua totalidade e que os desideratos objetivos iniciais previstos para a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos possam, de fato, ter a sua implementação plena. O objetivo é exatamente como a pergunta se coloca, é um processo de indução para que a transição se consolide.

A jurisprudência do Tribunal foi muito importante, como sabemos, na confecção da norma e será muito importante agora na sua interpretação e na sua aplicação. Então, vejo também como um dado positivo e aqui no Tribunal de Contas da União nós estamos muito animados com a implantação da Nova Lei, que é muito mais moderna e muito mais avançada do que tínhamos no marco legal anterior.

A questão do governo eletrônico é algo delicado porque não há dúvida que hoje no mundo a questão digital tomou conta. Há uma previsão inclusive legal no Brasil de termos um governo digital avançando, o que já existe, mas estamos ainda aquém do que é necessário. Os sistemas de tecnologia da informação têm que ser aperfeiçoados.

É interessante que eu tive aqui, até recentemente, um caso concreto já votado, na área do DNIT, onde o pregão eletrônico acabou se prorrogando pela noite adentro e o pregoeiro até acabou adormecendo e aí o sistema cancelou automaticamente… foi uma confusão danada porque houve um lance equivocado – então perceba que a tecnologia deve ser incorporada aos poucos no dia a dia da Administração, mas a Lei foi concebida de maneira muito criativa, adequada, moderna e consentânea com a realidade, com base em um uso intensivo da tecnologia. Então, na verdade, o governo eletrônico está muito bem representado com esse dado.

 Agora, nós temos de fato uma questão muito relevante em termos de dados. O Portal Nacional de Contratações Públicas, por exemplo, é um dos esteios maiores que temos em relação à Nova Lei e ele fornece dados abundantes, online, em tempo real, para o acompanhamento das contratações públicas em todo o Brasil. Então, é dado demais, que tem que ser analisado com cuidado.

Por isso, esse acompanhamento que o Tribunal de Contas da União tem feito da Lei é muito importante, porque nós temos uma estrutura muito boa, inclusive tecnológica, para darmos um acompanhamento bem objetivo dessas questões.  Então eu acho que o desafio que nós temos nos órgãos públicos, quer de controle, quer como os órgãos centrais, é o de reconhecer que não há futuro fora dessas questões digitais do governo eletrônico, não há dúvida alguma. Nós temos de nos preparar, qualificar as pessoas, instrui-las, manter treinamentos, comprar equipamentos modernos e adequados, mas é claro, sempre com acompanhamento para evitar o que nós vemos infelizmente com muita frequência, que são as ações de hackers, de pessoas inescrupulosas que têm acesso e conseguem fraudar os sistemas e, é claro que, nesse aspecto, a fragilidade é maior.

Estamos diante de um tema delicadíssimo, que é a questão da exceção à licitação.

Nós sempre comentamos que o comando constitucional se inaugura não com a ordem de licitar, mas com uma exceção. Então, licitação é uma regra, mas uma regra em razão de uma exceção e nós temos de prestigiar a licitação.

Entretanto, os primeiros levantamentos que fizemos aqui no TCU demonstram que, na aplicação da Nova Lei, ainda prevalecem, com imensa maioria, os casos de dispensa de licitação e inexigibilidade, com as diversas hipóteses que nós temos na Lei, inclusive o credenciamento, que é colocado na indagação e que é uma forma positiva e inovadora. Por que motivo? Não só porque a licitação, como está na questão, é uma processo caro e moroso, mas também porque as pessoas sempre tem aquela sua inclinação, o que tem de ser evitado. O gosto pessoal não pode macular o procedimento licitatório.

Essa questão relativa à fuga do rito licitatório já não é desta Lei: isso já acontecia anteriormente, até porque, no Brasil, no passado, nem havia licitação. Então nós estamos aperfeiçoando o processo. Eu acho que com a Nova Lei, como ela é mais moderna e trouxe esses novos institutos, inclusive regulamentando melhor a questão do registro de preços, por exemplo, e a questão do credenciamento que eu já mencionei, nós vamos avançar e o Portal Nacional [de Contratações Públicas] dará transparência e visibilidade a essas contratações que estariam fora do critério da licitação.

Vamos continuar estimulando que a licitação prevaleça, mas sabemos que, de fato, em muitas circunstâncias, em muitas situações fáticas, a licitação por si só não é a solução adequada para aquele caso colocado para aquela contratação, para aquela necessidade da Administração. Assim, nós vamos verificar isso caso a caso, mas sempre, é claro, nos empenhando e prestigiando o procedimento licitatório.

Em que pese a pergunta se colocar como a mais simples, na verdade é a mais complexa.

O que significa, para o Brasil, a Lei nº 14.133,  de 2021? Bem, eu acho que – e tenho dito isso em muitas palestras -, a Lei nº 14.133/21 se insere dentro de um novo ambiente normativo e no novo perfil da Administração Pública brasileira, baseado no consequencialismo no consensualismo.

Nós tivemos a inauguração, em 2015, com a lei que permitiu a arbitragem no setor público, depois nós tivemos a LINDB, depois nós tivemos a lei que mudou a improbidade administrativa, depois nós temos a Lei de Licitação e tudo isso modificando, digamos assim, o sentimento, o comportamento da Administração relação ao administrado,  ao jurisdicionado. Ou seja, nós passamos a ter, de fato, um sentimento de muito mais diálogo, de muito mais abertura. O Direito Administrativo perde aquele seu aspecto autoritário, autocrático, sempre com posição de supremacia, para estar mais presente no dia a dia das pessoas e das pessoas comuns, identificando soluções e vocacionando aquilo que é fundamental na Nova Lei de Licitações, que é a parceria com o setor privado. E, para termos uma parceria com o setor privado consolidada, deve haver um ambiente jurídico também positivo, por isso a LINDB [Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro] é irmã gêmea, irmã siamesa da Nova Lei de Licitações. As duas leis têm a mesma origem, que é, exatamente, permitir um Estado mais moderno, mais aberto, com mais diálogo e com mais participação do setor privado em seus vários aspectos. E, ao mesmo tempo, protegendo o gestor, o gestor honesto, o gestor probo que não pode ser punido eventualmente por falhas menores, por meros equívocos e com, evidentemente, a ausência de dolo ou má fé.

Então, penso que a Lei nº 14.133/21 representa muito para o Brasil: não só representa uma modernização do instituto de licitação, mas uma mudança de comportamento da Administração Pública, que se torna mais humilde: ela percebe que precisa do setor privado, ela vai investir em relação ao setor privado na área da qualidade, da eficiência, da remuneração variável, vai romper um pouco os grilhões do que eu chamo, muitas vezes, de uma espécie de dogma do menor preço, estimulando na área engenharia em especial o tipo técnica e preço.

São inovações muito importantes que nós temos agora e que a Lei vai contribuir para o desenvolvimento e a modernização do Brasil. É o que eu espero, oxalá, e tenho certeza que avançaremos.